As repercussões Jurídico-Penais da pandemia

1. Com a eclosão da pandemia relacionada à COVID-19 e ao patógeno popularmente conhecido como coronavírus, as consequências primárias são, certamente, aquelas relacionadas à saúde pública, dado o elevado número de indivíduos infectados mundo afora, bem como a alarmante taxa de letalidade. As consequências econômicas, da mesma forma, são devastadoras, uma vez que a pandemia provocou uma paralisação da economia global que só encontra precedentes em guerras mundiais.

2. Há, ainda, as consequências jurídicas oriundas da pandemia, as quais atingem, indistintamente, praticamente todas as áreas do Direito, com destaque para o Direito Administrativo, o Direito Tributário e o Direito do Trabalho, cujas práticas são umbilicalmente vinculadas às vicissitudes econômicas. Entre as repercussões jurídicas colaterais, mas nada desprezíveis, é possível citar aquelas atinentes ao Direito Penal.

3. Para elucidar as possíveis implicações criminais, parte-se não apenas do Código Penal e da legislação penal especial, mas também dos instrumentos normativos recentemente editados com o fim de combater a pandemia de que aqui se trata, entre os quais se destacam Portaria nº 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde, e a Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública e do Ministério da Saúde, além da Lei nº 13.979, de 2 de fevereiro de 2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional

decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Vale destacar, ainda, no âmbito do Estado de Santa Catarina, o Decreto nº 515/2020.

4. A reflexão orbitará, aqui, em torno dos crimes de “Lesão corporal” (art. 129 do CP), “Perigo de contágio de moléstia grave” (art. 131 do CP), “Perigo para a vida ou saúde de outrem” (art. 132 CP), “Epidemia” (art. 267 do CP), “Infração de medida sanitária preventiva” (art. 268 do CP), além dos crimes contra a ordem tributária (tipificados, em geral, nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, com previsões residuais no Código Penal).

4.1. Inicialmente, registra-se que, entre esses crimes, alguns deles por certo não se verificarão, ou se verificarão apenas em situações muito extremas: é o caso dos delitos de “Perigo de contágio de moléstia grave” (art. 131 do CP) e de “Epidemia” (art. 267 do CP).

4.1.1. Em relação ao perigo de contágio de moléstia grave, porque, embora não haja definições legais, tampouco jurisprudenciais a respeito do elemento “moléstia grave” previsto no art. 131 do Código Penal, não está certo que a COVID-19 se enquadre nesse conceito, até porque, embora estejamos diante de uma pandemia, a taxa de letalidade da doença não é muito elevada (orbita, em geral, abaixo do patamar de 5%). Além disso, por se tratar de crime que demanda dolo específico, seria necessário comprovar o conhecimento quanto à sua própria infecção e a sua intenção de transmitir a doença a outrem, o que imporia dificuldades probatórias significativas.

4.1.2. Quanto ao crime de epidemia, salienta-se, em primeiro lugar, que a epidemia – rectius, a pandemia – já se alastrou mundo afora e já alcançou, no Brasil todos os estados da federação. Além disso, seria necessário traçar o nexo entre a conduta de um sujeito individualizável e a propagação da epidemia, o que, mais uma vez, muito dificilmente seria constatável.

4.1.3. Assim, somente em situações muito extremas e improváveis os crimes dos arts. 131 e 267 do Código Penal teriam alguma relevância.

4.2. Há, por outro lado, crimes cuja consumação é mais plausível, embora também em relação a esses surjam algumas dificuldades. Referimo-nos especificamente aos crimes de lesão corporal, de infração de medida sanitária preventiva e de perigo para a vida ou saúde de outrem.

4.2.1. Quanto à lesão corporal (art. 129 do CP), é possível cogitar a sua consumação pelo indivíduo que sabe estar contaminado pela COVID-19 e transmite o vírus a um terceiro, de forma que realiza objetivamente o delito em questão, que pode doloso ou culposo e, ainda, pode ser qualificado pelo perigo de vida (art. 129, § 1º, II, do CP) ou pelo resultado morte (art. 129, § 3º, do CP)

4.2.2. Em relação ao crime de infração de medida sanitária, para que haja a consumação desse delito é necessário, em primeiro lugar, verificar se há “determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”, como indica a norma.

4.2.2.1. Diante dos atos normativos até aqui editados, nos âmbitos federal e estadual, é possível vislumbrar algumas espécies de determinações que se enquadram no molde normativo.

4.2.2.2. A Lei n. 13.979, por exemplo, menciona medidas como isolamento, quarentena e realização compulsória de exames médicos (art. 3º), bem como alguns deveres de comunicação (arts. 5º e 6º). Essa lei foi adicionalmente pela Portaria nº 356/2020, do Ministério da Saúde, segundo a qual a aplicação da medida de isolamento depende de prescrição médica ou recomendação do agente de vigilância epidemiológica (art. 3º, § 1º), e a decretação de quarenta exige ato administrativo formal e devidamente motivado (art. 4º, § 1º).

4.2.2.3. Nesse sentido, a Portaria Interministerial nº 5/2020 indica, em seus arts. 3º e 4º, que o descumprimento das medidas de isolamento e quarentena, bem como a resistência a se submeter a exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos, acarreta punição com base no art. 268 do Código Penal, que tipifica o crime de infração de medida sanitária.

4.2.2.4. Em resumo, a partir das portarias emitidas pelo governo federal, as condutas cobertas pelo art. 268 CP são as seguintes: descumprimento de determinações de isolamento e quarentena, bem como a resistência a se submeter a exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos. São essas as condutas que permitem a punição do agente pela prática do crime em questão.

4.2.3. Também é possível cogitar a prática do crime de Perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132 CP), em situações em que o agente, consciente de que está infectado com a COVID-19 e pode transmiti-la a terceiros, age de forma a permitir a contaminação de terceiros, de modo a expô-los a perigo.

4.3. Por fim, para além dos crimes vinculados à pandemia propriamente dita e às medidas sanitárias desencadeadas em razão da consequente crise sanitária mundial, cabe discorrer, ainda, sobre delitos vinculados às circunstâncias econômicas, que se agravaram significativamente no cenário atual.

4.4. Com as medidas restritivas adotadas para conter a propagação da COVID-19, a economia mundial foi seriamente impactada, sobretudo em razão do fechamento da esmagadora maioria dos estabelecimentos comerciais, que devem se manter fechados se não prestarem serviços essenciais.

4.4.1. Referimo-nos especificamente aos crimes contra a ordem tributária, tipificados na Lei n. 8.137/90 e, residualmente, no Código Penal.

4.4.2. Embora a jurisprudência seja bastante reticente, é possível que, mesmo que o sujeito tenha praticado, formalmente, um crime contra a ordem tributária (se sonegar ICMS, por exemplo), não seja ele punido se houver circunstâncias que justifiquem esse inadimplemento tributário, como é o caso de uma severa crise econômica pela qual passe a empresa.

4.4.3. Com a pandemia e as medidas restritivas que lhe acompanharam, adotadas pelos governos como forma de mitigar os danos sanitários causados pela COVID-19, os impactos econômicos serão severos e atingirão todos os setores da economia.

4.4.4. Assim, é possível que eventual inadimplemento tributário não seja considerado delitivo se o agente (empresário) comprovar que isso somente ocorreu em razão das severas dificuldades financeiras impostas pelo período de recessão econômica. É necessário frisar, enfaticamente, que os tribunais são bastante restritivos na aplicação dessas hipóteses de não criminalização (chamadas, juridicamente, de excludentes de ilicitude ou de culpabilidade, a depender do caso), de forma que somente em situações muito extremas – nas quais, por exemplo, a própria pessoa física do empresário sofra contratempos financeiros – essa tese de defesa será aceita.

Dr Luiz Eduardo Dias Cardoso

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